O que um filósofo e um analista de dados tem em comum?

Mariana
6 min readFeb 15, 2024
“SCUOLA DI ATENE” (Rafael Sanzio)

“Escola de Atenas” é um quadro do artista Rafael Sanzio, do século XVI, e além de muito bonito, eu o admiro grandemente. Ele tem seu significado para a História e de certo modo para o meu perfil profissional também. Sou formada em Filosofia e a minha base teórica é composta pelo pensamento aristotélico na Filosofia Política e Ética Antiga.

A respeito do quadro, nele aparecem dois dos principais filósofos do Período Antigo se destacando no centro da imagem: Platão (esquerda) e Aristóteles (direita).

Enquanto Platão aparece apontando para cima indicando o Mundo das Ideias, Aristóteles aparece com os braços na altura do corpo indicando as coisas sensíveis (tudo que vemos, ouvimos, tocamos, sentimos de modo geral).

Uma breve explicação conceitual: Platão afirma que vivemos na caverna, conhecendo apenas sombras e que a verdade habita num Mundo superior ao nosso — as Ideias, distantes e inacessíveis à maioria de nós. Aristóteles, por outro lado, defende que podemos alcançar a verdade partindo das coisas que “são mais conhecidas para nós” (1095b, EN) e por isso concede às opiniões o papel de “ponto de partida” da investigação filosófica.

Para ilustrar o método aristotélico de investigação, imagine a lapidação de uma pedra. Uma suposta pedra preciosa é encontrada na natureza em seu estado bruto, com resíduos acumulados em volta, impurezas de diversos tipos que ofuscam a preciosidade dessa pedra. Nesse estado, o valor ainda não é identificado, apenas estimado por quem a selecionou; tornando-se necessárias a limpeza e o polimento para confirmá-lo. A lapidação, portanto, é o processo indispensável para descobrir se a pedra é ou não preciosa.

A respeito do método da dialética o processo de descoberta é o mesmo. Segundo Aristóteles, fica mais ou menos assim: primeiro, a seleção das opiniões segundo o critério do reconhecimento (seja pelos sábios ou pela maioria), depois, o exame dessas opiniões para conferir se elas colidem ou se são compatíveis com os fatos. Esse método é uma “lapidação” pelo modo em que as falsas opiniões são desconsideradas e a verdade vai aparecendo ao longo da discussão filosófica.

Por exemplo, diante da discussão “qual é a finalidade da vida humana?” presente no Livro I da Ética a Nicômaco, Aristóteles destaca que há muitos propósitos a ser considerados, tais como a saúde para a medicina, a vitória para a estratégia, os navios para a construção naval, riqueza para a economia etc; deste modo, ele precisa ser mais específico. A questão é reformulada e torna-se “qual é a finalidade última para a vida humana?”. Para respondê-la, fica estabelecido ser a “felicidade”, pois tudo fazemos visando ela, no final das contas. No entanto, surge outra questão “o que é a felicidade?”, então ele se depara com algumas respostas, tais como: há quem diga ser o dinheiro, mas ele não é último (ele é meio para outras coisas); há quem defenda ser a honra, mas ela também não é última (pois é desejada para ter reconhecimento); há quem afirma ser o prazer, mas isso não é propriamente humano pois até os animais procuram. Enfim, é desse modo que a verdade se revelará, admite Aristóteles.

Nos meus estudos sobre tratamento de dados pude perceber tal similaridade: a lapidação dos dados para obtermos informações valiosas.

A coleta, a limpeza, a organização, a visualização dos dados fazem parte tanto da dialética quanto da análise de dados. Numa organização, por exemplo, são produzidos e/ou coletados dados de determinada atividade. No interesse de entender o andamento dessa atividade — seja para produzir mais ou solucionar algum problema — se realiza uma análise das informações. Primeiramente, esse processo analítico se inicia não com quaisquer dados, mas aqueles pertinentes. Considerando um número razoável de dados, seria mais ou menos assim:

  1. Seleção dos dados (sejam eles coletados ou produzidos);
  2. a limpeza que vai subtrair, em quantidade, a maior parte de conteúdo;
  3. a organização que vai subtrair, em qualidade, alguns dados para destacar aqueles que realmente importam; e,
  4. por fim, a visualização que vai caracterizar o conteúdo, isto é, as informações disponíveis.

Isso é só uma parte da atividade analítica dos dados. Além da semelhança metodológica, Aristóteles tem o projeto chamado Filosofia Prática que destaca outros elementos indispensáveis nas investigações filosóficas e na análise de dados. Uma vez que os dados estejam dispostos, é preciso ver as informações. A proposta da “lapidação” das opiniões é chegar à verdade, de fato, mas não para retê-la, e sim para agir.

Em outras palavras, a gente não extrai os insights dos dados apenas para conhecê-los, mas para tomar decisões.

A ação é um dos elementos do projeto da Filosofia Prática de Aristóteles. Além disso, é em vista desse elemento que é tão importante ter domínio sobre o negócio, pois os dados existem a partir dessa atividade e para ela se voltam. Além de ser finalidade, ela é critério (aquilo que faz um dado ser importante ou não). Uma vez eu li “se tudo é importante, então nada é”. Essa premissa nos informa que ainda que tudo seja importante, existe coisas mais importantes que outras; senão, nada é. Aquilo que define a relevância dos dados e das informações é o que se pretende alcançar, isto é, a finalidade — seja um problema, uma proposta, uma meta, um projeto. Enfim, é preciso conhecer não só o conteúdo (dados), mas sobretudo o que se deseja (propósito ou finalidade) com a investigação dos dados, pois é em vista desse fim que se faz a análise das informações.

Não obstante, o sucesso não é garantido nessa empreitada dialética dos dados. Aristóteles também estava ciente disso. Neste caso, outro elemento fundamental nos aparece: a qualificação do profissional. Essa qualidade é o que Aristóteles se refere por virtude. É isso que separa um profissional de um bom profissional. Voltando ao exemplo da lapidação, somente um bom profissional saberá identificar uma pedra potencialmente preciosa. Essa virtude é necessária não apenas para identificar os dados que podem gerar valor, mas para interpretá-los. Em outras palavras, um dashboards por si só não gera valor à organização sem um bom storytelling. Outro exemplo: uma faca é fabricada para cortar, então se ela não executa bem a finalidade para o qual foi feita, ela não é boa (sim, a qualificação tem a ver com a finalidade), para tanto, é indispensável que ela seja também afiada.

Para finalizar, um relato pessoal. Durante o período que realizei a Iniciação de Pesquisa Científica (PIBIC) e no processo de escrita da monografia na faculdade tive que lidar com muitos dados, muitas informações. Entre os numerosos artigos, capítulos, passagens e referências bibliográficas, a proposta da pesquisa muitas vezes perdia o foco; e para manter o prumo, foi fundamental a orientação do professor (profissional qualificado, no caso). Todo o material era importante, mas quais eram importante para o momento? Essa questão foi vital para distinguir aquilo que faria ou não parte da minha argumentação. “Separar o joio do trigo não é fácil”, me consolava o orientador. O exercício de saber o lugar e o momento de cada conteúdo, e se esse conteúdo vale um parágrafo ou uma nota de rodapé, é analítico. Ao longo desse processo de escrita, eu fui desenvolvendo habilidades e apurando meu olhar filosófico, ético, político e histórico.

Com isto, concluo que tanto o conhecimento sobre os dados, sobre o negócio e quanto a habilidade analítica do profissional compõe caraterísticas semelhantes ao papel do filósofo na sua investigação rumo a verdade. A dialética se aproxima da análise pelas suas etapas, mas sobretudo, pela sua incansável capacidade de identificar conhecimentos valiosos em matéria bruta.

O que um bom filósofo e um bom analista de dados tem em comum? Um olhar apurado frente aos fatos.

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Written by Mariana

Entre dados e informações, falo algumas filosofias.

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